Uma ou duas notas sobre a arte da composição coreográfica.

 

 

 

 

 

 

 

 

“Em aulas anteriores já tivemos a oportunidade de nos ocupar com o problema da expressividade na arte. Vimos que as soluções artísticas não ocorrem a partir de análises que o artista faça de seus pensamentos e emoções e depois transfira às formas. Os processos criativos são sínteses. Nelas surgem, intuitivamente, as técnicas e as formas adequadas à expressão”. (OSTROWER, 2004, p.67)

Escrever sobre o universo da criação em dança não é tarefa das mais fáceis. Para falar a verdade, escrever sobre processos criativos de um modo geral costuma ser um vespeiro. Ainda mais hoje, em que se deve tomar muito cuidado com fórmulas mágicas vendidas por uma profusão de “coachings” de internet, que prometem domínio sobre quase qualquer assunto em poucos cliques e, obviamente, muito dinheiro. 

Cada pessoa é um mundo em si, os estímulos para criação são diversos e muitas são as variáveis que podem interferir no trabalho. Costumo dizer que estar em processo de criação é andar no fio da navalha, se equilibrar na corda bamba onde, de um lado, residem seus interesses enquanto artista, e do outro, aquilo que você acredita ser o interesse do público, aquele a quem você quer comunicar.

Mas talvez seja possível falar uma ou duas coisas sobre esse ofício tão bonito quanto precário. E creio que devemos começar por aí: como pode um mesmo labor encerrar em si qualidades que parecem tão opostas? A maturidade nos ensina que nada é oito ou oitenta, mesmo num terreno movediço onde por vezes a métrica do movimento é dividida em oitavas.  Criar envolve uma série de conexões complexas entre corpo e pensamento: 

 “Quando um corpo aprende a dançar, promove uma das mais extraordinárias assembleias entre suas aptidões evolutivas, uma vez que dançar implica na montagem de uma teia sofisticadíssima de acordos entre os sistemas envolvidos” (KATZ, 1999, p.15). 

 

Helena Katz é certeira ao dizer que a dança, antes de acontecer no corpo, acontece no pensamento: “a dança que se vê no corpo do bailarino existe antes como mapa no seu cérebro” (1999, p.15).

Voltando ao âmbito da precariedade, esta reside em dois âmbitos, a saber: no processo de criação em si, este por sua vez absolutamente subjetivo; e no ofício, onde neste caso, falamos do campo social, mais precisamente do mercado de trabalho. Falando do primeiro âmbito, criar para dança, sejam peças inteiras, sejam coreografias (existe diferença entre uma e outra?), sejam oitavas, é um processo bastante delicado, onde muitas vezes, aquilo que você idealiza não é o que se concretiza no palco. E não se realiza porque existe uma série de fatores que se interpõem entre aquilo que você imagina antes mesmo de testar o primeiro movimento e a coreografia pronta.

O primeiro fator são as pessoas que vão dançar aquilo que você ainda vai propor. Seja você professor de uma turma, seja a frente de um elenco, ou mesmo criando para si mesmo, a qualidade daquilo que você está elaborando vai sofrer interferência dos corpos que vão executar sua proposta. Como professor, é muito comum uma metodologia voltada para apreensão de um modelo: o professor monta no corpo a sequência e a transmite para os alunos, cuja função é somente apreender as células de movimento. Neste modo de fazer, mesmo a dança tendo sido organizada passo a passo, esta dependerá totalmente da qualidade do movimento dos alunos/intérpretes e de seus níveis de aprendizado.

Em se tratando de um trabalho em cia profissional ou amadora, além da pedagogia do modelo acima explanada, também pode ser desenvolvida uma metodologia mais laboratorial. Nesta, o coreógrafo não necessariamente vai montar as células de movimento em seu próprio corpo e transmiti-la ao elenco; ele pode trabalhar através de proposições que permitam que os bailarinos atuem mais que como intérpretes, como coautores das partituras de movimento. As sugestões do coreógrafo passarão, neste caso, pelo filtro do entendimento dos bailarinos, o que pode ser muito rico e ultrapassar inclusive as expectativas inicialmente criadas sobre a obra.

Todo esse processo envolve partilha, escuta, diálogo, revelando nas suas sutilezas a beleza de que falamos no início. E por esses mesmos motivos, revela também sua precariedade. É precário sim, porque é frágil. É frágil porque são interferências que podem mudar profundamente o sentido originalmente pensado para a obra. Uma coisa é aquilo que você, professor ou coreógrafo, pensou em desenvolver ou transmitir. Outra coisa é aquilo que seus intérpretes ou cocriadores vão desenvolver a partir do entendimento que eles terão sobre o assunto. E uma terceira coisa é o que a própria obra quererá. Estranho, não? Mas é isso, tem um momento do processo de

 ”Isso não significa que metodologias laboratoriais só sejam exercidas no âmbito de cias. Diferentes métodos de criação podem habitar tanto o terreno da sala de aula como da sala de ensaio.”

criação em que a obra ganha vida e vai sugerir para você os caminhos a serem seguidos. Ouvir todas essas todas essas vozes requer atenção, calma e uma boa dose de intuição. Requer desapego, disposição para pesquisa e humildade. 

Por isso o processo é tão bonito e tão precário. E olha que estamos falando somente das interferências subjetivas no processo. Mas existe aquela outra precariedade, do campo social, que dificulta a vida dos profissionais que atuam no ofício da dança, seja no ensino, seja na atuação para a cena. Esta precariedade se materializa na falta de valorização de seus saberes, pela tiktokrização e a uberização do mercado de trabalho. Obviamente que esta precariedade também interferirá nos processos de criação e no resultado final, na obra em si. O assunto dá pano para manga, né? Mas isso fica pra um outro artigo. 

 

Referências bibliográficas:

OSTROWER, Faiga. 1920-2001 Universos da arte – 24°Ed. –Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

KATZ, Helena. O Coreógrafo como DJIn: PEREIRA, R. SOTER, S. (Org.). Lições de Dança 1, Rio e Janeiro: Ed. UniverCidade, 1999.

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